Crítica | Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre mi Madre)

Nota
5

Imagine a seguinte situação. No dia de seu aniversário, um adolescente é atropelado e morto enquanto tenta pedir um autógrafo de sua atriz preferida, depois de uma apresentação teatral. Sua mãe, presente naquele fatídico momento, fica desolada e sozinha, como se tivesse culpa pela fatalidade e nada mais fizesse sentido em sua vida. Afinal, os dois eram muito próximos e um só tinha a companhia do outro. Diante dessa perda irreparável, o que você faria para lidar com tudo isso?

Esse questionamento, portanto, resume a atmosfera do filme “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Manuela, a mãe, é apresentada como uma mulher contida, depois de tantas adversidades da vida. A morte repentina de Estebán, seu filho, muda drasticamente esse comportamento e a faz ir atrás do pai – que atende pelo nome de Lola, uma transgênero – do garoto, a fim de unir forças para superar o traumático acontecimento. Nesse contexto, quanto mais mergulhamos nesse universo, mais presos às interações ficamos – principalmente quando a travesti Agrado e a jovem grávida Rosa surgem em cena e passam a acompanhar a protagonista nessa jornada.

Dentro dessa perspectiva, Pedro Almodóvar não poupa o espectador. Isso já é recorrente na sua filmografia e tudo leva a uma profunda reflexão melancólica. Note que, embora esteja sem chão com a ausência do herdeiro, Manuela desenvolve aos poucos um novo tipo de sentimento e se redescobre na própria trajetória. Nesse sentido, sua convivência com as quatro distintas mulheres, a princípio, se forma através de inseguranças e uma certa apatia de umas com as outras, já que a interação ainda é nova, ambas se desconhecem e as personalidades se confrontam – até mesmo nas semelhanças.

À medida que percebemos os estágios do luto e da aceitação de Manuela, conseguimos destrinchar a sua relação com o filho, e do quão a presença das outras mulheres pode “substituir” esse vazio depressivo. Aos poucos, a enfermeira reconhece pequenos detalhes de seus comportamentos nas características das companheiras de jornada, e esse entendimento fortalece cada vez mais profundamente a relação. Agrado e Rosa, por exemplo, guardam memórias dolorosas de um passado não tão distante, e de perdas e se agarram à saudade como fio condutor de suas histórias, como se dependessem somente dessas sensações. Afinal, não é fácil se desprender de memórias e momentos quando tudo remete a esse dolorido sentimento.

Todas ali, sem exceção, têm uma função no enredo, independentemente do nível de relevância. Agrado é a responsável pela fala sobre a necessidade de ser autêntico em meio a tanta cópia. Discutindo fortemente temas sobre a sexualidade, o gênero e os estereótipos, a personagem carrega consigo um enorme desapego às cópias e um sentimento de liberdade para ser quem é, apesar das barreiras e dos julgamentos. Nesse sentido, aos poucos, se transforma na figura mais humanizada e complexa da narrativa, servindo como “ponte” entre os tipos que percorrem pela trama e seus devaneios. Mais do que isso, um exemplo vivo da filosofia existencialista, sempre se questionando sobre atitudes e as sensações que guarda na alma.

Esse perfil questionador se estende às outras também. Grávida e abandonada por todos, Rosa é uma “alma perdida”. Julgada pelos seus atos numa sociedade conservadora e moralista de aparências, a jovem encontra em Manuela um zelo de mãe – que não tem com sua progenitora, assim como a protagonista encontra em Rosa o carinho de uma filha. Ou seja, um cuidado mais que recíproco. Nesse sentido, Almodóvar não hesita em construir uma singela relação, em que os mínimos detalhes cativam o espectador. Ainda que corra o risco de tornar tudo artificial, a aproximação entre ambas é natural, tal qual o senso crítico que as personagens desenvolvem, expandindo um nível de voz para ser ouvida cada vez mais.

A partir do momento em que Manuela se depara com Huma Rojo, a atriz preferida de seu filho, acaba com os sentimentos divididos. Ao mesmo tempo que se deslumbra com o comportamento enigmático e exuberante da estrela, parece culpa-la pela morte do herdeiro. Afinal, Esteban só morreu depois de uma tentativa frustrada – e fatídica – de contato com Rojo. Nesse contexto, a artista funciona como reflexo de veteranas da atuação presas a um “padrão” e ao medo do envelhecimento, ao passo que exerce uma grande influência no seu público. E essa divisão de sentimentos reflete no espectador, ainda confuso com a presença de Huma e sua relação com as outras mulheres da obra.

Depois de tantas situações, Manuela, enfim, encontra Lola, e o momento é recheado de sensibilidade e afeto, fugindo de qualquer tipo de estereótipo e dramatização extrema. O silêncio de uma diante da outra é significativo e ecoa, transformando suas vidas e ressignificando o ciclo. Lola também teve um filho com Rosa, sem conhecer o parentesco – assim como não sabia sobre Esteban. A impressão é que tudo isso não parece ter um fim e essa relação cíclica recomeça a cada momento.

Aos poucos, percebemos que a maternidade proposta por Almodóvar no filme não se limita à história entre Manuela e o filho, mas também ao papel de equilíbrio que a enfermeira assume com as novas amigas, tomando as dores e as rédeas das situações. Mesmo que esteja abalada psicologicamente, Manuela encontra forças para se reerguer e amparar as outras, como se tudo isso substituísse o vazio que sente pela morte de Esteban. Em todo instante, o cineasta espanhol deixa clara essa intenção, fazendo com que as protagonistas encontrem semelhanças até nas disparidades e vice-versa.

Dito isso, os quesitos técnicos do longa merecem atenção. A já elogiada direção cuidadosa de Almodóvar eleva o nível do filme, permitindo uma conexão entre a ficção e a realidade e realizando enquadramentos que valorizam as expressões dos personagens, assim como a trilha sonora impecável. Do início ao fim, somos hipnotizados por esse universo, como se fizéssemos parte dele e conhecêssemos cada detalhe da trama, e pelas referências clássicas que o diretor promove, tal qual “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) e “A Malvada” (1950), que engrandecem o enredo.

Além disso, o elenco se mostra verdadeiramente harmonizado, e todos têm seu devido destaque. Cecilia Roth, intérprete de Manuela, conduz com maestria as nuances da protagonista, cativando o espectador e facilitando a empatia, numa performance avassaladora e sem apelos artificiais – não foi à toa que venceu o Goya, o mais importante prêmio do cinema espanhol. Enquanto Antonia San Juan (Agrado) e Marisa Paredes (Huma) surgem explosivas e exuberantes em cena, Penelope Cruz transforma sua Rosa numa pessoa contida e praticamente silenciosa, atuando com o olhar e a emoção. Destaque também para Toni Cantó, a Lola, e todo seu empenho arrebatador com a personagem. Uma equipe digna de todo prêmio possível.

No fim de tudo, “Tudo Sobre Minha Mãe” — filme, vale lembrar, dedicado à memória da mãe de seu diretor e às mulheres de sua vida, ultrapassa a figura da mãe e sua idealização, por meio de um enredo sensível e arrebatador que promove ótimas reflexões existencialistas. Humano, trágico e avassalador. Faltam adjetivos que descrevam precisamente o poder desse marco no cinema.

“Na vida, quanto mais nos parecemos com aquilo que idealizamos sobre nós mesmos, mais autênticos ficamos. E isso custa muito caro.”

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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