Nota
É possível ser sentimental e edificante sem cair no cafona? Como em qualquer caso, tudo sempre depende da maneira como se incorpora o sentimentalismo e a mensagem à linguagem proposta pelo trabalho. Neste caso, o novo filme da diretora Marielle Heller, dos muito bacanas Diário de um Adolescente e Poderia Me Perdoar?, é uma ode à bondade humana filmada – e encenada – com uma sinceridade e um compromisso tão genuínos que acena à fronteira do piegas durante vários momentos dos 109 minutos de projeção sem nunca atravessá-la.
Um Lindo Dia na Vizinhança é baseado numa história verídica e trata do jornalista investigativo Lloyd Vogel, responsável por realizar um inusitado perfil do apresentador de um programa infantil muito popular “Mister Rogers’ Neighborhood“. Fred Rogers, o perfilado em questão, é uma figura conhecida por ser das mais afáveis que se poderia imaginar e o ponto central do roteiro escrito por Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster são os conflitos pessoais de Lloyd e na sua incredulidade com a “pureza” de espírito, por assim dizer, do Mister Rogers.
Em essência, o longa é uma profunda quebra em todo e qualquer espécie de cinismo. O fato de a plateia acompanhar a jornada do jornalista (interpretado pelo muito bom Matthew Rhys) funciona como um portal de realismo; ficaria difícil para o espectador comprar a ideia de gentileza e fofura absolutas se o filme impusesse o sentimentalismo desde o princípio.
É importante salientar, portanto, que, com toda a ternura, Um Lindo Dia na Vizinhança não é de modo algum para crianças. A persona do Mister Rogers é tão afável e doce – e seu programa tão sinceramente delicado, sem afetação – que pode passar a falsa impressão do conteúdo ser discurso pronto de primário construtivista. Mesmo a diretora seguindo a risca muitas dessas mensagens, acaba se tornando muito bonita a forma como ela escancara esse lado sentimental através de closes constantes, às vezes demorados, que faz transparecer tudo o que há de mais genuíno nos personagens. Os olhares demorados, os zooms que denotam uma observação peculiar de pequenos gestos, a fotografia sem afetação e o uso muito controlado das miniaturas (em contraste com a frieza plácida dos gerais da cidade); tudo parece participar da tentativa persuasiva de Heller em criar esse afeiçoamento do público pela história e por Rogers, de maneira simultaneamente direta/honesta e delicada/sutil.
O filme certamente extrai seus momentos mais inspirados quando Tom Hanks está em cena, justamente por ser uma interpretação que imita os trejeitos de Fred Rogers sem cair numa caricatura beatificada. É uma sombra de bondade e afeto tão grande projetada por ele que fica difícil não senti-la mesmo em sua ausência. Às vezes o próprio espectro dele é ambíguo, levando em conta as misturas emocionais e os questionamentos do personagem de Matthew Rhys (o que culmina numa fabulosa sequência de sonho).
Aliás, essa mistura dos sentimentos de Vogel, e a observação em torno de uma personalidade, são tão curiosos em conjunto que, talvez, a única fragilidade de Um Lindo Dia na Vizinhança seja a falta de peculiaridade no drama enfrentado pelo Lloyd Vogel e sua família. O conflito em si é executado de forma doce e funcional, mas não esconde certo esquematismo em suas resoluções, que poderiam preservar o ar mais irregular do segundo ato.
Ou talvez a beleza do trabalho de Marielle Heller seja justamente a harmonia entre os sentimentos e problemas mais simples, básicos e comuns e essa bondade honesta e sem sarcasmo que encontra respaldo em todas as suas decisões estilísticas. Um balanceamento aparentemente fácil, mas, em tempos de tanto maneirismo e fórmulas impessoais, o efeito acaba sendo um bocado recompensador.