Nota
Às vezes, as maiores demonstrações de coragem não vêm de heróis grandiosos, mas de pessoas comuns que se recusam a aceitar o silêncio imposto pela sociedade. Em meio à rotina cansada de uma vida simples, um ato de resistência pode surgir quase sem aviso, mudando para sempre o destino de quem ousa desafiar o sistema. E quando esse ato é inspirado em uma história real, o impacto se torna ainda mais profundo.
Vitória é um retrato desse tipo de bravura cotidiana, mas carrega consigo um peso ainda maior: o longa marca o último trabalho do diretor Breno Silveira, que faleceu durante a produção. Sua visão inicial, cheia de humanidade e força, foi levada adiante por Andrucha Waddington, que assumiu a missão de finalizar o projeto. O resultado é uma obra que carrega tanto a emoção da história retratada quanto o tom melancólico de uma despedida não planejada.
Baseado em fatos reais, o filme acompanha a jornada de uma mulher comum que, cansada de viver sob a constante sombra da violência e da corrupção, decide tomar o destino em suas próprias mãos. A narrativa se desenrola em um Rio de Janeiro sufocado pelo crime organizado e pela omissão das autoridades. No centro desse turbilhão está Nina, interpretada com maestria por Fernanda Montenegro. Sua personagem, inspirada em Joana da Paz, uma mulher que denunciou uma rede de tráfico, é uma força da natureza que se recusa a ser silenciada.
A atuação de Montenegro é o coração pulsante do filme. Aos 95 anos, a atriz entrega uma performance de tirar o fôlego, misturando vulnerabilidade e uma determinação quase indestrutível. Cada olhar, cada silêncio e cada linha de diálogo são carregados de uma profundidade emocional que poucos atores conseguiriam alcançar. Em uma das cenas mais impactantes, sua personagem recebe uma notícia devastadora e, sem derramar uma lágrima, comunica uma avalanche de sentimentos apenas com o olhar. É uma aula de atuação, mostrando que a força de uma personagem não está apenas no que ela diz, mas no que ela sente e transmite.
A direção equilibra com habilidade o tom do filme, mesclando momentos de tensão sufocante com respiros emocionais genuínos. O longa evita cair no melodrama barato, mas não tem medo de mergulhar na emoção crua da história. Os planos fechados no rosto de Montenegro ressaltam cada nuance de sua interpretação, enquanto as cenas externas capturam a brutalidade da realidade que a cerca. O contraste entre o pequeno apartamento de Nina e o caos das ruas do Rio de Janeiro reforça a sensação de que ela é uma ilha de resistência em meio a uma tempestade.
O elenco de apoio também merece destaque. Alan Rocha, como o jornalista que ajuda Nina a expor a rede criminosa, traz uma performance honesta e carregada de empatia. Linn da Quebrada, em uma participação breve, mas marcante, adiciona uma camada de humanidade e doçura à trama. Thawan Lucas, estreando como Marcinho, cria uma conexão com o público ao representar a esperança e a inocência ameaçadas pela violência ao redor.
Apesar de sua força narrativa e das atuações impecáveis, o filme tropeça em alguns momentos. A transição entre a direção de Breno Silveira e Andrucha Waddington é perceptível, resultando em uma mudança de tom que, em certos pontos, quebra o ritmo da narrativa. Além disso, o roteiro, embora poderoso, por vezes recorre a diálogos expositivos para reforçar o perigo que Nina enfrenta — algo que poderia ser mais eficazmente transmitido pela imagem e pela tensão implícita. O thriller político que a trama sugere acaba perdendo força para o melodrama em determinados trechos, o que dilui um pouco o impacto da mensagem.
Outro ponto que gera discussão é a escolha de Fernanda Montenegro para interpretar uma personagem baseada em uma mulher negra. Quando a atriz foi escalada, a verdadeira identidade de Joana da Paz ainda não era conhecida, o que só veio à tona após a conclusão do filme. A decisão de manter Montenegro no papel, mesmo após essa revelação, levanta questionamentos importantes sobre representatividade e autenticidade. Ainda assim, é inegável que a atriz entrega uma performance que eleva o filme e carrega a narrativa com uma dignidade rara.
Vitória é, acima de tudo, um filme sobre resistência. É um lembrete brutal de que, mesmo em um mundo onde a violência e a corrupção parecem imbatíveis, a coragem individual ainda pode fazer a diferença. Fernanda Montenegro dá vida a uma protagonista que se recusa a ser vítima e nos lembra do poder que existe em não se calar. Embora o filme tenha seus tropeços, sua mensagem e sua protagonista permanecem gravadas na memória — uma homenagem tocante àqueles que, mesmo sob ameaça, escolhem lutar pelo que é certo. E, em sua essência, é também uma despedida emocional e respeitosa ao legado de Breno Silveira, que partiu deixando uma última história que não poderia deixar de ser contada.
Victor Freitas

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.