“… E o crescente número de mutantes representa uma clara ameaça, tanto aos Estados Unidos quanto à ordem sociopolítica do mundo como conhecemos.”
Nova York se transformou em uma zona de guerra silenciosa, com a chegada da Cruzada Stryker, comandada pelo Reverendo William Stryker, e seus Purificadores, a cidade está sendo dividida ideologicamente. Os mutantes, vulgarmente chamados de Mutuna, são caçados, um a um, e eliminados, mortos por conta da sua diferença, mortos por ter nascido diferentes, não importa se eles são apenas crianças inocentes ou adultos treinados, a força de Stryker mata sem dó nenhum deles, numa busca por purificar a humanidade daqueles que despertaram a vergonha de Deus.
Lançada pela Marvel Comics em 1982, a história de edição única vai fundo na ferida mundial do preconceito, e parece que nunca consegue deixar de ser tão atual e dolorosa. A trama começa com algumas páginas mostrando o desespero de Mark e Jill, dois irmãos de onze e nove anos, respectivamente, que se tornaram órfãos depois que seus pais foram brutalmente assassinados pelos Purificadores e agora estão desesperados pelas ruas fugindo de um novo esquadrão, mandados especialmente para mata-los a sangue frio, duas crianças inocentes que nem sabem direito usar seus poderes, mas que são igualmente condenadas pela sua genética incomum.
Criado para se tornar um especial não-canônico da franquia, X-men: Deus Ama, O Homem Mata acabou se tornando um dos maiores e mais estrondosos clássicos editoriais dos X-Men, indo fundo numa metáfora tão latente e diversa sem se deixar cair na armadilha da polarização politica. A Marvel possui os mutantes, e é com eles que o roteiro de Chris Claremont tem a chance de chocar, machucar e nos fazer refletir, o preconceito pode ter várias faces, pode ter varias fases, mas ele sempre funciona com o mesmo modus operandi, e é justamente essa essência que é transmitida tão habilmente através de Stryker, uma essência que gera uma das cenas mais emblemáticas da história das HQs e que parece ser um reflexo profético da realidade, já que ela se conecta com paralelos reais até a atualidade.
Numa obra que fala cruamente sobre o preconceito, fica explícito quem é o principal inimigo dos X-Men, aquele que se sobressai em meio aos vilões e desafios, uma verdadeira alegoria à diferença, uma verdadeira prova do quanto as HQs podem ser uma grande arma de conscientização politica e moral. Enquanto os Estados Unidos ainda estavam lutando contra as sequelas da segregação social da década de 50, a HQ vai fundo nessa ferida ao mostrar que os mutantes, assim como os negros, podem ser seres superiores ou até melhores do que muitos dos segregacionistas, mas sua diferença é suficiente para faze-los serem humilhados, rebaixados e destruídos por esses extremistas.
X-men: Deus Ama, O Homem Mata é uma linda homenagem ao debate metafórico que foi criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1963, e que foi exaltado por Claremont nessa edição, com palavras dolorosas sendo proferidas, capazes de rasgar a alma de qualquer pessoa que presencie as barbaridades criadas por Stryker e repetidas por boa parte da população, uma crítica violenta que ganha forma pelas mãos das ilustrações de Brent Anderson, uma trama que pode até ter surgido para nos conscientizar sobre a marginalização dos negros, mas que com o tempo foi ganhando força ao ser facilmente interpretado como uma conscientização à exclusão das mulheres ou dos homossexuais, um debate que (infelizmente) não perde sua modernidade e, assim como o grupo poderoso da Marvel, merece fazer parte da bagagem cultural de qualquer nerd que se preze.
“Deus criou o homem e a mulher à sua imagem, abençoados com a sua graça.
Os mutantes quebraram esse molde, eles eram criações não de Deus, mas do demônio.”
Icaro Augusto
Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.