Resenha | A Natureza da Mordida

Nota

4.5

Depois do arrebatador Tudo é rio, Carla Madeira retoma o seu interesse profundo pelos conflitos humanos, agora com uma nova experiencia de linguagem, mais direta e sofisticada, porém tão envolvente quanto o seu livro de estreia. Em A Ntureza da Mordida, a escritora nos apresenta uma narrativa envolvente onde as duas protagonistas da história se veem entrelaçadas em suas jornadas em busca de respostas através de conversas sobre os seus conturbados passados: “O que você não tem mais que te entristece tanto?”

É com esta pergunta que Biá, uma psicanalista aposentada, apaixonada por literatura, aborda a jovem jornalista Olívia pela primeira vez ao encontrá-la sentada à mesa de um sebo improvisado. A provocação inesperada, vinda de uma estranha, capaz de ouvir “como quem abraça”, desencadeia uma sucessão de encontros, marcados pela intimidade crescente e que aos poucos revelam as histórias das duas mulheres. “Nossa amizade começou assim, enquanto nos afogávamos”, relata Olívia.

Narrado em alternância de vozes, o livro nos pega pela força descritiva e objetiva de Olívia, contrapondo-se com as anotações esparsas de Biá, cujos fragmentos de uma memória falha nos conduzem a um ponto de virada na trama que, além de nos revelar eventos marcantes no passado, evidencia o paralelo entre as diferentes formas de abandono sofridas e concretizadas pelas amigas. Ao conhecermos Olívia, somos preparados para compreender Biá e, finalmente, refletir sobre a pergunta: o que faríamos em seu lugar?

Debruçando-se sobre a dor que percorre o corpo seguindo pelas veias, Carla Madeira, com grande maestria, nos permite acompanhar momentos em busca de cura causados por ausências, abandonos e falta de compreensão do que a vida nos exige, ambientado numa banca de revista, os encontros entre Biá e Olívia, costuram retalhos de reminiscências, confessados em seus íntimos pensamentos, compondo uma grande colcha recheada de dores e angústias do viver diário.

Autora de outros grandes livros, Carla Madeira se reafirma como um dos maiores nomes da literatura nacional contemporânea. Seu estilo de narrativa é marcado com uma escrita potente e envolvente. Somos frequentemente convidados a nos transportar num mundo onde as memórias das personagens pintam com riqueza de detalhes, uma grande imagem sobre o existir e as angústias que nos fazem ser quem somos ao longo desta jornada chamada vida.

“É por essas e outras que as distrações me aliviam. As rimas. As flores inesperadas. O que fisga meu olho pelo rabo. A vida não é de confiança, Olívia, nos apunhala com a mesma faca com que passa manteiga. A vida, essa senhora banguela, não teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não inibe as gargalhadas. Ao contrário, gosta de nos exibir a extensão da mordida que nos dará com deboches e ironias ao invés de dentes, para nos fazer pagar a língua enquanto giramos estonteados, pra lá e pra cá, entre suas gengivas.”

Ficha Técnica