Nota
“Três assassinatos aconteceram exatamente na noite em que se esquecera de terminar o encanto, mas aquilo só podia ser coincidência. Assassinatos ocorriam toda noite naquela cidade, e espíritos não matavam.”
Jandira Pavio-Curto poderia ser só mais uma pessoa perdida no meio da multidão plural de Recife, mas, além de ser drag queen, ela herdou de sua mãe a missão de ser a última costureira de almas de Recife, um ‘cargo’ que a deixa com a missão de não só ver espiritos, como evitar que o pano que separa os mortos dos vivos se desmanche e manejar os fios sobrenaturais que prendem esses mortos no lado errado do pano da morte. Tendo que conviver cotidianamente com todos os dilemas de alternar entre as personas de Júlio e Jandira, e de enfrentar todo o preconceito que ainda permeia entre as ruas da cidade (seja a homofobia ou a intolerância religiosa), ela se vê arrastada para uma nova confusão quando, após cometer um erro, pode ter iniciado uma série de assassinatos paranormais no centro de Recife. Agora mais envolvida do que nunca nessa emaranhado sobrenatural e criminoso, Júlio/Jandira, com a ajuda do doce policial Emilio, da sua grande amiga Fabíola e de sua ranzinza avó desencarnada, Jerusa, precisa desvendar o que aconteceu, por que os espiritos estão cometendo esse crime e como salvar a cidade antes que o véu que separa os mundos se rasgue completamente.
Desde suas primeiras páginas, A Trama da Morte mostra que está abrindo as portas para uma história surreal e intima, jogando qualquer recifense para o meio das ruas do centro da cidade enquanto desfia seu enredo pelas ruas e prédios que todos nós conhecemos. Cheio de referências e uma ambientação que preza por todos os detalhes, o texto vai se desenrolando sem excluir ninguem, ao mesmo tempo que vai criando um clima de tensão a cada novo acontecimento e alimenta nossa curiosidade com voracida: afinal, quem está matando essas pessoas? Por que? Como parar essa onda de assassinatos sobrenaturais? Jandira é uma mulher de garra, mesmo que seja um homem por baixo de suas roupas, ela consegue ter a raiva de suas ancestrais borbulhando nas veias e agarra com toda a força essa nova persona para se transformar em outra pessoa, muito mais corajosa e capaz de enfrentar os perigos da noite de Recife sem titubear, uma coragem que parece fazer parte da ‘armadura’ que a drag é, e que parece fugir um pouco de Júlio quando ele se despe da personagem. Julio é um garoto acanhado, ele tem aquela raiva das suas ancestrais borbulhando, mas parece ter sempre o receio de colocar pra fora, fica claro a cada página que Jandira não é só um alter-ego para Julio, ela é sua libertação, para ser quem realmente ele é e sem medo de julgamentos. A forma como Lucas Santana vai construindo a trama, cheia de camadas, suspense e um terror discreto e envolvente, nos captura, mas é o regionalismo que torna tudo ainda mais profundo, criando uma experiência que nos abraça e nos guia pelos eventos da obra.
A história prova o tato do autor em cada capitulo, resgatando o poder sobrenatural que exala em Recife e todas as suas lendas, conectando os causos e contos de uma das cidades mais assombradas do Brasil com uma trama que trata de LGBTfobia e intolerância religiosa com a mesma naturalidade que se guia pelo seu teor de misterio e policial. Jandira é uma personagem forte, infelizmente as 120 páginas parecem pouco para a história realmente se esmiuçar, o que acaba criando uma pequena acelerada em algumas soluções no meio da trama, criando uma justificativa que funciona para a história mas poderia ser muito mais generalizada se tivesse mais tempo para ser desenvolvida, mas nada que estrague a experiência que é a jornada de Jandira. Outro ponto negativo é o fato de Jandira não ter virado ainda a protagonista de uma saga, seria maravilhoso ver a Drag e Costureira de Almas se aventurando pelas ruas de Recife como uma guardiã ou justiceira, desemaranhando as almas que surgem pelos diversos lugares, quem sabe até com seus sidekicks. O livro ainda se completa com o conto Fruto Podre, um bônus de 33 páginas narrado por Marina, uma garota pobre do interior da Paraíba que viu a vida de todos em sua cidade mudar quando uma família de ingleses chegou comprando tudo, desde o velho engeno abandonado, que se tornou a mansão onde eles passaram a morar, até as velhas usinas desativadas, que reabriram. Mas mudanças nem sempre trazem apenas coisas boas, a vida de Marina mudou completamente, por ela saber falar inglês acabou se tornando empregada naquela mansão, e sendo testemunha do misterio que envolvia a grandiosa mangueira, a maior de todas as árvores daquele quintal e que só produzia mangas podres, e de tantas outras assombrações que estavam presas àquelas terras malditas.
Com uma escrita magnética, A Trama da Morte é uma obra que merece ser lida e relida por cada vez mais pessoas, a obra mistura fantasia e terror de uma forma envolvente ao mesmo tempo que critica, brincando com as lendas, desventuras e costumes que a cidade de Recife possui, mas sem nichar a história ao ser detalhista com todos os elementos que são importantes para a trama. Todo o ambiente se torna denso a medida que vamos nos embrenhando pela história criada por Lucas, fazendo com que a gente deseje cada vez mais saber a resposta para as diversas perguntas que vão surgindo. A imersão se torna ainda mais completa com Fruto Podre, que prova que os fantasmas são verdadeiros guardiões de memórias, principalmente as ruins, a dor que Samu carrega ou o rancor existente em Rebeca, tudo isso mostra o quanto o tempo vai deixando dores por onde passa, e o que acontece quando essas dores voltam do mundo dos mortos para buscar sua vingança. Com personagens muito bem construidos e uma ambientação palpavel, o autor aproveita dos protagonistas, tão reais e iconicos, para criar uma preciosidade da literatura nacional, que merece ser compartilhada e lida por tantas pessoas.
“Este engenho era da minha família.”
Ficha Técnica |
Livro Único Nome: A Trama da Morte Autor: Lucas Santana Editora: Corvus |
Skoob |
Icaro Augusto
Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.