Review | Black Mirror [Season 6]

Nota
4

Um mundo onde a tecnologia é o grande antagonista, isso é Black Mirror, uma série britânica antológica de ficção científica, criada por Charlie Brooker, com tramas obscuras e satíricas sobrevoando a sociedade moderna e expõe as consequências imprevistas das novas tecnologias. Depois de um hiatus de quatro anos, o sexto ano da série chega cheia de exectativas na Netflix no dia 15 de Junho de 2023, dessa vez começando a voltar ao seu padrão ao trazer cinco épisodios de cerca de 1 hora e com uma temporada que promete ser a mais imprevisível de todas.

A temporada se inicia com o empolgante Joan is Awful, um drama focado em nos apresentar Joan Tait, uma CEO de tecnologia que acaba descobrindo que um serviço de streaming, chamado Streamberry (uma aplicativo que curiosamente faz “tudum” quando é iniciado e mostra sua inicial em tela enquanto está carregando), transformou sua vida no roteiro de uma série estrelada por Salma Hayek, e brinca com a sanidade dos expectadores ao problematizar sobre a pratica de aceitar os Termos e Condições sem ler. Num verdadeiro Inception, com a Joan de Hayek descobrindo uma série estrelada por Cate Blanchett, o drama nos presenteia com uma atuação impecavel de Annie Murphy, que entra em choque ao ver sua vida, seus segredos e seus dilemas estão sendo transmitidos mundialmente e até distorcidos para aumentar o entretenimento do show. Como se não bastasse o poder bélico do episódio, Brooker se supera criando uma reviravolta explosiva como cereja do bolo da trama.

Com direito a presença de Michael CeraHimesh Patel, Rob Delaney, Ben Barnes e Max Harwood, a construção do episódio se mostra detalhista, trazendo uma cena onde somos apresentados aos programas disponiveis no catalogo da Streamberry, produções que são claras referencias aos diversos capitulos de Black Mirror, como Finding Rithman (que mostra em sua capa ser uma produção sobre Colin Ritman, de Bandersnatch), The Callow Years (que parece ser um documentário sobre o primeiro-ministro Michael Callow, de The National Anthem), Loch Henry – Truth Will Out (uma referencia ao final de Loch Henry, segundo episódio dessa sexta temporada), Juniper Dreaming (provavelmente algo relacionado a San Junipero) e uma produção sobre Ashley O (de Rachel, Jack and Ashley Too), além disso temos o emblemático Sea of ​​​​Tranquility, a produção ficticia que vem sendo citada pelos episódios de Black Mirror desde a primeira temporada, e que muitos acreditam ser uma pista sobre um grande evento-episodio que a série futuramente vai ter. Só esse episodio é suficiente para mostrar que a espera de quatro anos valeu a pena, começando a temporada com o pé direito e deixando altissima a expectativa para os episodios seguintes.

O segundo episódio é o misterioso Loch Henry, uma trama focada no casal de cineastas Davis e Pia, que viajam para a pacata cidade escosa de Loch Henry, onde Davis nasceu, para gravar um documentário sobre a natureza. Tudo começa a mudar quando Davis lembra de Iain Adair, um serial killer que foi descoberto por Kenneth, seu pai, no final da década de 90, um homem que sequestrava, torturava e matava alguns turistas da cidade, oito vitimas que fizeram Iain ficar conhecido e o turismo da cidade declinar até chegar ao marasmo que está condenando a cidade. A história de Iain é uma intrigante e assustadora história local que chama a atenção de Pia, que convence o namorado a mudar o tema do filme, investigar toda a história que se conecta com terriveis eventos do passado e os envolve na perigosa história local. A proposta de um documentário true crime de Iain parece uma oportunidade para Davis e Pia, e o constraste da personalidade dos personagens interpretados, respectivamente, por Samuel BlenkinMyha’la Herrold, dupla que entrega um climax perfeito de protagonistas de terror e nos envolve na curiosidade sobre o que realmente pode estar escondido por trás da história.

A participação de Daniel Portman como Stuart surge como um caminho de migalhas, aconselhando sempre o casal e adicionando informações que fortalecem a motivação dos personagens a seguir o caminho que melhor vai desenvolver o roteiro, até as participações de Monica DolanJohn Hannah se mostram essenciais para o desenrolar do roteiro. Seguindo o padrão de fanservice, o longa começa nos falando sobre um documentário da Netflix chamado The Waltonville Claw, que parece uma referencia a alguma futura produção do streaming ou de Brooks, segue com uma cena onde vemos um poster de divulgação de The Callow Years, e completa com a apresentação dos documentários Euthanasia: Inside Project Junipero (focado no projeto de eutanasia apresentado em San Junipero) e Suffer the Children: The Tipley Paedophile Ring (que parece ser uma referencia a Demon 79), que engrandecem o universo onde a série se insere e só aproxima ainda mais os espectadores da produção.

O terceiro episódio nos leva a uma versão alternativa tecnológica de 1969 com o tenebroso Beyond the Sea, com seu enredo focado nos astronautas Cliff Stanfield David Ross. A trama nos coloca frente à dupla de astronautas que deixam suas famílias na Terra e embarcam numa missão pelo espaço, deixando para trás uma réplica robotica deles mesmos que se conectam com a consciencia dos astronautas quando necessário, garantindo que eles possam ficar uma parte do tempo trabalhando na estação espacial e outra parte num estado de como induzido, onde sua consciencia passa a viver dentro do corpo do robô até o momento da próxima atividade no espaço. O problema é que tudo começa a desandar quando Capa, o líder de um culto naturalista, invade a casa de David junto com seus seguidores Sigma, Teta e Épsilon, matando a esposa e os filhos de David e destruindo completamente sua replica, uma trágedia que destroi a vida de David e passa a prejudicar a convivencia entre os colegas, atrapalhar o trabalho deles no espaço e mudar completamente quem David é. Protagonizado por Aaron Paul (Cliff) e Josh Hartnett (David), o episodio explora toda a estranheza dessa versão bizarra de vivencia e consegue problematizar ainda mais a tecnologia a medida que vai se desenrolando, criando uma situação complexa que começa a colocar em risco os astronautas e suas vidas.

Sem explorar muito a fundo o universo da franquia, o episódio foca muito mais no poder dramatico que a história possui, no quanto a tecnologia foi responsavel pela tragédia que aconteceu na vida de David e nos leva a refletir até onde as ‘facilitações’ da tecnologia podem realmente ser boas para a vida de uma pessoa. Sendo o mais longo da temporada, com uma hora e vinte minutos, o episodio traz as participações de Kate MaraRory Culkin e Auden Thornton, que se tornam golpes emocionantes e precisos no roteiro, com Kate interpretado a proativa esposa de Cliff, que consegue ajudar seu marido a resgatar a felicidade do parceiro, Rory vivendo o frio e insano Capa, que é o autor da tragedia que despedaça David, e Auden como a amorosa esposa de David, que tem uma personalidade tão doce que torna ainda mais duro ao publico encarar sua morte. Pesado de uma forma inesperada, o episodio deixa referencias discretas, como sinal misterioso em forma de Y de White Bear no poster do episodio ou o distintivo de David lembrar a tecnologia de Arkangel, mas parece não ter a intenção de se conectar diretamente ao universo de Brooker, o que pode ser frustrante depois da expectativa criada pela referencia no poster.

O penultimo episódio é o intenso Mazey Day, que começa nos levando até meados de 2006, quando Bo, uma supercompetente fotografa, percebe o peso do seu trabalho ao conseguir um furo de Justin Camley e vê-lo se suicidar logo depois, algo que muda completamente sua vida. Logo depois somos apresentados a Mazey Day, uma problemática estrela de Hollywood que faz de tudo para escapar dos paparazzi, que vê sua vida ser colocada de cabeça pra baixo depois que acaba atropelando uma pessoa, o que a obriga a sumir do mundo e largar o trabalho, ela só não esperava que Bo e seu colega, Hector, receberia a bem recompensada missão de descobrir o paradeiro da mulher e trazer as valiosas fotos mostrando seu destino, fotos que valeriam ainda mais se ela estivesse claramente drogada. Com direção de Uta Briesewitz, o episódio é protagonizado por Zazie Beetz como Bo, uma mulher determinada e incansavel quando o assunto é conseguir a foto premiada, se envolvendo numa situação inesperada e completamente aterrorizante na busca pela tal foto comprometedora de Mazey.

O elenco do episodio se completa com Clara Rugaard (Mazey) e Danny Ramirez (Hector), que complementam com primor o papel que Zazie interpreta e a impulsiona a seguir correndo atrás de garantir o registro valioso. O episódio volta a citar Sea Of Tranquility, dessa vez adicionando a informação de que o show é estrelado por Justin Camley e que outra integrante do elenco é Sydney Alberti, que se envolveu em um escandalo, por outro lado, a série brinca com o seu tema ao deixar completamente implicito onde a tecnologia se encaixa em todo o dilema, deixando até de se aprofundar na conexão com o universo e se fortalecendo ao incitar nossa curiosidade em volta dos acontecimentos tão marcantes, o que poderia fazer as revelações do fim do capitulo ficarem ainda mais potentes se Brooker não tivesse escolhido uma explicação tão frustrante para tudo que aconteceu, um final que é tudo, menos Black Mirror.

A temporada finaliza com o obscuro Demon 79, que nos leva ao norte da Inglaterra do final da década de 1970 e se concentra na tímida e pacata assistente de vendas Nida Huq, uma mulher que vive satisfeita com sua vida e sendo fiel ao seu codigo de etica até ser surpreendida pela visita de Gaap, uma entidade misteriosa que ela acaba invocando por acidente e informa a Nida que o preço da invocação é ela cometer três atos terríveis ou permitir que um desastre mundial que matará bilhões de pessoas aconteça. Com direção de Toby Haynes, esse episódio consegue manter a linha tenue de sua personagem bem clara desde sua introdução, a Nida de Anjana Vasan é uma garota bastante contida, mas também carrega dentro de si um ódio poderoso que a faz se imaginar despejando violencia em todas as pessoas que estão erradas pela sua visão, tudo apenas em sua imaginação, mas será que Nida vai ser capaz de suprimir esse ódio após receber a missão assassina de Gaap? O desempenho de Paapa Essiedu como Gaap nos surpreende, ele encarna o papel do diabinho no ombro de Nida, provocando a mulher e a incentivando a cumprir sua missão de matar três pessoas, lhe proporcionando visões sobre os atos hediondos das pessoas e sobre o impacto que eles podem ter na vida daqueles ao seu redor, empenhado em cumprir sua tarefa de corromper Nida enqanto incentiva a vendedora a buscar evitar o apocalipse.

Surpreendendo os espectadores, Demon 79 não é uma distopia tecnológica, que é a proposta da série de Brooker, o que só destaca ainda mais a introdução trazer um letreiro anunciando ‘Red Mirror apresenta’, como indicação de que este é o primeiro episódio de uma leva que podemos ver futuramente sob o rótulo Red Mirror entre os episódios de Black Mirror, ou até uma série spin-off com episódios mais focados em apresentar um elemento sobrenatural mais forte. O episodio ainda conta com a participação de Katherine Rose Morley no papel de Vicky, a colega de trabalho chata de Nida, e David Shields como Michael Smart, um proeminente politico que acaba cruzando o caminho de Nida, duas personalidades que podem circundar a protagonista, mas que acabam não tendo interferencia direta no seu desenvolvimento, ao menos não de forma tão clara. Focando num terror mais contido, o episódio ganha força e parece fugir do padrão do show, deixando uma curiosidade e uma sede por mais nos espectadores.

Ousada e inventida, a sexta temporada de Black Mirror brinca com as conexões do universo e as referencias, começando a temporada bem com um episódio que brinca até com a própria empresa que distribui o show, e tomando um caminho que deixa a trama cada vez mais estranha a medida que vai avançando, ora para bem e ora para mal. Os destaques da temporada com certeza são Joan is Awful e Demon 79, um que vai fundo quando o assunto é distopia tecnologica e o outro que não tem quase nada de tecnologico sendo evidenciado em sua trama, mas ambos capazes de nos evolver e nos aproximar do enredo. Talvez o tempo e a quantidade de episódios esteja começando a pesar na demanda por mais episódios, principalmente com séries como Love, Death & Robot despontando ao abordar temas semelhantes e, em algumas ocasiões, entrando no campo das ideias que poderiam facilmente virar episodios da série de Brooker. O sexto ano de Black Mirror não é um desastre, mas também não chega ao ponto de ser uma das melhores temporadas do show, deixando seus episódios num meio termo que pode até agradar atualmente, mas que não vai ser suficiente para manter a série viva por muito tempo.

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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