Nota
“Há dois tipos de pessoas no mundo.
As vivas e as mortas.”
Em 1858, uma mulher e sua filha se abrigam em uma igreja ao fugir de um perigoso grupo de entidades quando, como última defesa, a garotinha escondeu um poderoso artefato em sua boneca e a usou para lançar um feitiço de proteção. Hoje, alguns séculos depois, aquela região se tornou o Bairro da Liberdade, em São Paulo, e é nesse novo mundo que Zenóbia Yamasaki, a garotinha, segue como uma poderosa bruxa protegendo a boneca, e consequentemente o artefato dentro dela, mas alguns espectros do passado começam a ressurgir, entre eles um ser maligno que busca a boneca de Zenóbia. Durante um ataque à casa de Zenóbia, Mila, Carla e Pardal acabam ficando com a boneca e precisam, de todas as formas possíveis, fugir da policia agora que são considerados culpados pelo assassinato que aconteceu naquela casa, mesmo sem saber o poder do artefato que está em suas mãos.
Numa versão americanizada de São Paulo, a série se aproveita do posto de produção de terror da Netflix gravada no Brasil para chamar atenção, mas é a experiencia de Douglas Petrie que faz o show ser tão primoroso. O cineasta, que fez fama com a série Buffy the Vampire Slaye, dirige a série de uma forma espetacular, tendo um controle estupendo sobre a premissa de trazer adolescentes em idade escolar correndo por aí atrás de monstros (assim como fez em Buffy), criando um roteiro que parece ser uma fusão de Scooby-Doo com Tarantino, e tinha tudo para ser perfeito, mas não foi. O roteiro de Petrie é espetacular quando visto de longe, mas tem tantos detalhes mal feitos que a obra se desintegra a cada episódio, trazendo sequencias visualmente magnificas que (perdão pelo trocadilho) parecem completamente sem alma.
O americano tenta fazer uma trama que gira em torno de espíritos centenários transformam o bairro paulistano da Liberdade em um campo de batalha, mas ele fica num limiar muito perigoso, ele tem uma premissa que faria um show se fosse feita fora e escolhe abrasileirar a produção, acabando por não conseguir nenhum dos dois, Spectros não transmite o amago de seus cenários, não se harmoniza com sua ambientação e fica brigando o tempo todo na luta por conectar uma mitologia completamente estrangeira com a história do Brasil. Depois da sequencia inicial, vemos um filme que poderia facilmente ser uma produção gringa, talvez seja esse o ponto que fez a apresentação de Spectros ser tão precária e a de 3% não ser, é praticamente impossível conectar a realidade brasileira com uma trama tão surreal, 3% escolhe o lúdico para unir a história do Brasil com seu futuro distópico, mas Spectros escolhe trazer o sobrenatural oriental para as ruas de são paulo, o que acaba não se conectando e criando um contraste que soa incomodo para os espectadores.
Criando uma lenda em volta da Oitava Noiva de Sado Khan, o roteirista, que nunca havia visitado o Brasil antes de começar a escrever o roteiro, pecou habilmente em querer unir suas crenças ao que entendeu do Brasil, talvez seja por isso que ele não conseguiu fazer um show conciso o suficiente para ser agradável. Com seus sete episódios de cerca de 40 minutos, o show não decepciona apenas por não saber aproveitar bem sua premissa, ele também erra com sua atuação problemática, num elenco onde parece que apenas Danilo Mesquita e Alexia Botelho se destacam. Mesquita vive Pardal, um garoto pobre que vive de furtos para conseguir sustentar a vida dele e de seu irmão caçula, Léo (Enzo Barone), desde que sua mãe desapareceu, já Botelho surge como a fantasma narradora, que apesar de ter pouquíssimo tempo de tela rouba completamente nossa atenção quando aparece, com toda a sua acidez, sensatez, dureza e carisma. Barone é uma peça fundamental no roteiro, que é incrivelmente conveniente e falho, Léo surge como primeiro a notar a infestação de fantasmas, investigando o que está causando tudo isso enquanto busca encontrar sua mãe, o problema é que, de uma hora para a outra, Léo consegue desvendar toda a história da boneca, das cinzas e do surgimento dos fantasmas sem nem ter de onde tirar essa conclusão, como se fosse apenas confortável ao roteiro que tudo fosse descoberto naquele ponto e o garoto fosse usado só pra revelar o encaixe de tudo.
Ao lado de Pardal, a trama se impulsiona pelo trabalho de Cláudia Okuno e Mariana Sena. Okuno vive Mila, uma descendente de japonesa que traz algum segredo em sua ancestralidade, que está sempre sendo insinuada por Celso, seu pai, quando ele conversa com sua mestra, Zenóbia. Mila parece ter dois mundos dentro de si, a perfeitinha Mila, que está sempre visível, que luta para ser um exemplo para todos, para ser amada por todos e para ser inalcançável, acabando por colidir seus lados quando Pardal se aproxima dela, apaixonado pela garota que vê seu mundo desabar quando é puxada para dentro desse pesadelo na Liberdade, começando aos poucos a manchar sua imagem, se corromper ou, mais claramente, expor seu verdadeiro eu. Sena tem uma subtrama incrível como Carla, mas não explora nada dela, uma grande decepção. Carla escuta vozes, assim como Celso, e é a primeira a perceber os poderes da boneca, ela vive uma vida dupla completamente, fora de casa ela consegue ser seu verdadeiro eu, uma menina poderosa, sensual, que despertou o desejo de Zeca, que humilha Mila e é inabalável, mas dentro de casa ela precisa mudar, a mãe de Carla é uma religiosa devotada, ela precisa fingir ser uma garota recatada, precisa fingir que seus demônios (as vozes) não existem, mas as coisas estão piorando e ela não sabe o motivo, agora que os mortos estão se reerguendo, as vozes estão mais fortes, e cabe a Carla ir fundo no mundo da bruxaria para entender seus poderes e como controla-los.
A trama acha uma dupla de antagonistas perfeitas, enquanto de um lado temos o misterioso Necromante, que está trazendo os mortos de volta a vida e usando-os para tentar roubar as cinzas, o ingrediente final para tornar ele o mais poderoso dos bruxos, de outro temos Ricardo, o policial que capturou o trio com a boneca, que está investigando um misterioso assassinato e acredita que tudo tem relação com a boneca. Incisivo, bondoso e decidido, o policial interpretado por Daniel Rocha tem todo o material para ser um grande antagonista, mas acaba sendo sub-aproveitado na trama, perdendo seu brilho para dar lugar ao antipático Necromante, quando o verdadeiro vilão da trama surge, ele acaba não sendo tudo o que merecia, nos arrastando por um plot sofrido que não nos cativa em nada.
O show ainda conta com Kelzy Ecard, Miwa Yanagizawa e Carlos Takeshi três grandes nomes da dramaturgia nacional que acabam escalados para papeis que não chegam aos pés de seus talentos, tudo isso guiado por um roteiro raso, frio e sem contexto com as cenas, que vai crescendo com a desculpa de exaltar o Bairro da Liberdade mas parece ter vergonha de mostra-lo, ou de trazer realmente um folclore mais abrasileirado para as telas, fugindo pela tangente ao construir tudo em volta de uma mitologia oriental que não honra nem ao Brasil e nem ao Japão, parece que o roteiro foi realmente escrito nos Estados Unidos, para uma trama que se passa em Nova York, e depois foi traduzido e encaixado, forçosamente, nos cenários paulistanos. No final, resta um gosto de constrangimento, o que nos leva a um final desprovido de qualquer motivação emocional, que não nos permite apego a nenhum dos personagens e nem aos seus sacrifícios, deixando claro que a produção tinha um imenso potencial mas enterrou ele junto com as cinzas mágicas em um conglomerado de tentativas frustradas de desenvolver uma mitologia, um enredo e personalidades que não evoluíram tão bem.
“Todo mundo morre.
Cedo ou tarde.
Até mesmo você.”
Icaro Augusto
Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.