Crítica | Eu Não Sou um Homem Fácil (Je ne suis pas un homme facile)

Nota
3

E se um homem machista do nada acordasse em um mundo liderado por mulheres? Dirigido por Éléonore Pourriat, o filme francês Eu Não Sou um Homem Fácil (2018) aborda o machismo estrutural através de uma sátira. De repente, o protagonista, Damien (Vincent Elbaz), um homem machista, acorda em uma realidade em que os papéis de gênero são invertidos. Pensando por uma ótica feminista liberal francesa, o filme pode ser considerado uma crítica bastante inteligente às estruturas da sociedade patriarcal. Contudo, quando se analisa mais a fundo, percebe-se o quão pode ter sido a abordagem da diretora.

Partindo do ponto que Eu Não Sou um Homem Fácil tem como premissa a ideia de colocar um homem para viver na pele o que mulheres vivenciam com o machismo, fica bastante evidente como os conceitos de “papel de gênero” e “expressão de gênero” aparecem de forma bastante desconexa na obra, o que enfraquece a sátira. Assim que o protagonista entra nessa “nova realidade” percebe-se que a obra coloca as personagens mulheres para vestirem paletó, bermuda, roupas socialmente consideradas “masculinas”. Enquanto os homens continuam utilizando roupas masculinas, só que mais curtas, consideradas “menos masculinas”. Mas se a diretora também queria abordar o conceito de expressão de gênero, porque não colocou os homens para usarem vestidos, maquiagem, saltos? Seria por uma masculinidade frágil da parte dos atores? Ou da própria diretora achar algo “extremo demais” para o filme?

Outra reflexão válida para o filme é pensar para quem essa narrativa está sendo direcionada e para que público a sátira realmente funciona. Um jovem da geração Z em 2024 assistindo a esse filme iria achar algo inovador? E enquanto a uma pessoa LGBT+ que tem sua existência pautada na não-normatividade? O que podemos tirar disso, é que a realidade considerada “distópica” no filme, em alguns âmbitos já existe. Estruturalmente, não vemos muitas mulheres em locais de poder. Mas é comum encontrarmos mulheres que não performam feminilidade, com pelos, que tomam iniciativa, que praticam esportes, que são fortes. Ao mesmo tempo que também encontramos homens que cuidam da casa, das plantas, da pele, choram, se depilam. Enfim, é importante reiterar que o foco nessa suposta “inversão” de expressão e papel de gênero não é um artifício tão inovador da narrativa. Contudo, para pessoas cis-hétero-brancas, principalmente mais velhas, essa realidade normativa é tão latente que a obra realmente pode ter um impacto maior.

Ainda mais, é relevante analisar a forma banal que são retratadas as cenas de estupro no “mundo invertido” presente na narrativa. A forma que o longa representa é irresponsável, mesmo sendo uma sátira, estupro é um assunto muito sensível para ser banalizado da forma que foi. E fica mais revoltante ainda quando, depois de todo esse processo de imersão do protagonista de sofrer preconceito em um mundo dominado por mulheres, ele continua sendo machista, agride a personagem La Coach (Moon Daily), a qual sofre as consequências no final. Assim, o momento em que o filme realmente adquire uma seriedade é quando a mulher agredida volta ao mundo real e se depara com outras mulheres feministas lutando por seus direitos.

Eu Não Sou um Homem Fácil, portanto, é uma obra que tem o intuito de quebrar estigmas, mas continua reiterando estereótipos. Tendo em vista a força do feminismo liberal na França, compreendemos como narrativas rasas como essa têm impacto grande para uma população branca e cis-hetero-normativa. Dessa forma, a sátira quer provocar, assim como no protagonista, também no público, a sensação de estranheza, algo que até certo ponto, consegue. Contudo, certos aspectos relacionados a raça e representação da comunidade LGBT+ são completamente ignorados, como se a realidade do machismo no mundo se moldasse apenas à vivência de uma pessoa cis hétero branca. Dessa forma, é possivel entender toda a proposta do filme, contudo parece extremamente rasa e, em alguns aspectos, irresponsável sua abordagem sobre o machismo estrutural.

 

Estudante de cinema, pernambucana

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