Nota
“As lágrimas correram pelo rosto de Jessie de novo, mas ela não sabia se estava chorando pela possibilidade – finalmente enunciada – de que podia realmente morrer ali ou porque, pela primeira vez em pelo menos quatro anos, quase pensara naquela outra casa de verão, a do lago Dark Score, e no que acontecera ali, no dia em que o sol desapareceu.”
Jessie e Gerald Burlingame são, aparentemente, o casal perfeito; Ele é um famoso advogado, repleto de prestígio que trabalha em uma poderosa firma. Ela é a perfeita dona de casa, servindo como esposa troféu que se preocupa apenas em sua próxima reunião com as amigas. Mas, internamente, o casamento está passando por uma crise que esfriou a relação do casal. Na tentativa de apimentar as coisas, Gerald começa a trazer jogos sexuais para o quarto com os quais, inicialmente, Jessie concorda, mas, conforme a relação avança, ela perde um pouco do interesse nos novos brinquedos do marido. Em uma nova tentativa, o casal viaja até sua casa no lago, afastado dos demais para que possam curtir esse momento a sós.
Acorrentada em uma cama, Jessie começa a se arrepender de ter aceitado participar desse novo jogo e, quando Gerald não escuta seu pedido para que a solte, ela sente uma pontada de horror e fúria que acendem memórias adormecidas em sua mente. Decidida a se livrar e faze-lo escutar, ela o agride, o que faz sofrer um ataque cardíaco fulminante, deixando-a atordoada e presa entre os pilares da cabeceira na cama. As chaves estão longe do seu alcance. E o seu marido, o único que poderia soltá-la, está morto no chão encerado. Vulnerável e aterrorizada pela perspectiva de nunca conseguir fugir, Jessie entra em uma espiral de pânico, enquanto fantasmas do seu passado começam a ganhar força em sua mente, forçando-a a encarar segredos que estavam enterrados na escuridão total da qual ela nunca saiu.
“A roda que range é sempre a que recebe graxa”
Stephen King sempre teve o dom de despertar os nossos piores medos, demostrando através dos seus livros o incômodo que nos assola a cada nova escuridão. Mas, mesmo nos nossos piores pesadelos, não poderíamos imaginar um contexto tão tenebroso quanto a impotência diante de uma situação inesperada.
Jogo Perigoso é um dos livros mais claustrofóbicos escrito pelo Mestre do Horror. King consegue nos transportar para um enredo angustiante que nos coloca em um local de agonia constante que nos consome a cada virada de página. Embora seja um dos livros mais introspectivos do autor, King consegue reverter esse contexto para algo ainda mais complexo do que poderíamos imaginar. Aproveitando a vulnerabilidade de sua protagonista, o autor constrói um enredo que pode ser ainda mais tenebroso que qualquer monstro criado pelo mesmo: a possibilidade de ser forçado a encarar traumas tão profundos que você simplesmente deletou de sua mente.
Jessie está longe de estar preparada mentalmente para a situação em que se encontra. Durante boa parte da sua existência ela escondeu de si mesma um momento tenebroso de sua vida, demostrando que sua narrativa é pouco confiável. Ao decorrer dos capítulos, vamos entendendo seu passado, enquanto ela se vê obrigada a encarar cada pensamento e lembrança tenebrosa que guarda no lado mais obscuro de sua mente. King utiliza um aspecto peculiar na narrativa, fragmentando a personalidade da protagonista em diferentes vozes que a enfrentam e a assombram a cada segundo de sua tortura particular. Cada um desses novos aspectos traz uma vertente interessante para a narrativa, criando personas chamativas que tornam a dinâmica ainda mais profunda em seu cerne. É aqui que conhecemos A Esposinha Perfeita (um traço submisso e acusador, que evita a todo custo se meter em problemas), Ruth (uma persona ácida e impulsiva que assume a voz de uma antiga colega de faculdade da protagonista) e Brobinha (o lado infantil que foi reprimido durante muito tempo e condenada pelas demais vozes), que trazem um fluxo de pensamentos constantes que ocupam os lugares dos diálogos que estamos acostumados.
É exatamente ao ser confrontada pelas diferentes vozes de sua cabeça que a protagonista cresce, demostrando uma evolução febril que beira a insanidade em inúmeros pontos da narrativa. Ao ser forçada a reviver seus segredos, Jessie mergulha ainda mais fundo em suas feridas, demostrando dores profundas de aspectos que tantas mulheres passam ao longo da vida. E é aqui que King brilha em sua construção de narrativa. Dissecando os nervos sociais, King vai se aprofundando nas temáticas e demostrando as diferentes faces da violência encarada pelas mulheres, passando pela negação, culpa e aceitação das vítimas a cada novo levantamento que propõe. E é exatamente nisso que o verdadeiro horror mora.
Como se não bastasse a montanha russa psicológica, o autor ainda nos introduz perigos externos, dando um sentido de urgência que nos faz devorar as páginas. Seja pelo miserável Ex-Príncipe (um cachorro abandonado a própria sorte que é levado ao extremo para sobreviver) ou o misterioso Cowboy Espacial (uma criatura aterradora que pode ou não ser real, mas que arranca verdadeiros arrepios na espinha a cada nova aparição na estória), tudo aqui é colocado de maneira precisa para nos causar um desconforto crescente que grita em nossa cara que cada segundo perdido pode ser o último.
O livro ainda tem forte ligação com outra obra do autor sendo, originalmente, pensados para fazerem parte da mesma antologia sombria. O Eclipse Total e suas consequências são amplamente explorados, e quando as duas obras se encontram trazem um verdadeiro deleite narrativo, mesmo que não se aprofunde devidamente. Desconfortável e avassalador, Jogo Perigoso consegue nos deixar com um nó na garganta desde o seu primeiro capítulo. Embora os temores físicos possam ser cruéis, a verdadeira ameaça está escondida nos nossos traumas, principalmente quando decidimos ignora-los para nossa própria saúde mental. Principalmente quando tanta violência é escondida através dos valores morais da nossa sociedade.
“Acho que é a única chance de se libertar. Você não pode fugir mais, Jessie. Você tem de se virar e encarar a verdade.”
Ficha Técnica |
Livro Único Nome: Jogo Perigoso Autor: Stephen King Editora: Suma |
Skoob |
Phael Pablo
Preso em um espaço temporal, e determinado a conseguir o meu diploma no curso de Publicidade decidi interagir com o grande público e conseguir o máximo de informações para minhas pesquisas recentes além, é claro, de falar das coisas que mais gosto no mundo de uma maneira despreocupada e divertida. Ainda me pergunto se isso é a vida real ou apenas uma fantasia e como posso tomar meu destino nas minhas mãos antes que seja tarde demais...